quinta-feira, 17 de maio de 2012

Memórias de um túmulo



Celso Deretti


Todos tinham aversão a mim. Nunca poeta algum me exaltou. Ricos e pobres, sábios e ignorantes, dominadores e vassalos, reis e súditos, todos sabiam que, cedo ou tarde, eu lhes serviria de morada. Que fascínio, afinal, um túmulo como eu, depósito de imundície, poderia exercer sobre alguém? Nasci para ser objeto de medo e opróbrio dos homens.
Da pedreira de onde vieram as pedras para me construir, Salomão extraíra as pedras para erguer o majestoso templo de Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, em Jerusalém. Todos os anos, por ocasião da Festa da Páscoa, abrigava milhares de peregrinos que chegavam de todas as partes do país para prestar culto de adoração ao Deus vivo. Em seus átrios perpetuavam a memória do glorioso dia em que Deus libertara o povo judeu da escravidão do Egito.
Os peregrinos não se cansavam de elogiar as pedras que harmonicamente compunham os diversos recintos do imponente edifício. Dentre eles, o Santo dos santos, que abrigava a Arca da Aliança. Em suas orações também lembravam de mim. Pediam a Deus que os livrassem de minha companhia: “Ó meu apoio, não fiqueis surdo à minha voz; não suceda que, vós não me ouvindo, eu me vá unir aos que desceram para o túmulo” (Sl 27, 1). A maldição pesava sobre a minha existência. Eu não passava de um abrigo para o salário do pecado: a morte!
Às pedras do templo, o perfume do incenso; Às minhas, o cheiro fétido de um cadáver em decomposição. Àquelas, os louvores e ações de graças elevadas ao Céu; A mim, as lamentações e os cantos fúnebres dos que choram seus mortos. Oxalá, usassem minhas pedras para edificar a casa da Sagrada família em Nazaré! Ali, contemplariam a santidade de Maria e ouviriam a terna voz de José explicando os textos sagrados ao menino Jesus. Ao invés disso, a contínua companhia da morte.
Certo dia, sentada sobre mim e apoiada no cabo de sua foice, confidenciou-me: “Meu caro túmulo, a vida do homem é uma luta contínua contra o meu poder. Eu tenho a última palavra sobre a vida humana. Ninguém, absolutamente ninguém, escapa das minhas garras. Eu sou o salário do pecado. Todos os filhos e filhas de Adão são meus reféns. Com o olhar eivado de soberba, concluiu: “Eu sou invencível”.
Subitamente, depois de um riso sarcástico, levantou-se e desapareceu. Mais tarde soube que saíra para ceifar a vida de um rico opulão que se negava dar as migalhas que caiam de sua mesa a um pobre chamado Lázaro. Os cães, que lambiam-lhes as feridas, demonstravam mais misericórdia do que ele. Espero que não o tragam até mim. Pior do que o mau cheiro de carne podre, é o mau cheiro do pecado. Muitos homens se parecem comigo. Por fora bem ornados, impecavelmente bem vestidos, mas por dentro só imundície: orgulho, avareza, inveja, ira, luxúria, gula, preguiça, mentira, calúnias, difamações, roubos, assassinatos, corrupção, devassidão, bebedeira, orgias, pornografia, adultério, idolatria, impiedade, incredulidade e ganância.
Solidão quebrada
Meus dias de solidão foram quebrados pelos choros e lamentações de um grupo de mulheres e homens que se aproximava. Era sexta-feira, véspera da Páscoa dos judeus. Quando entraram, reconheci José de Arimatéia e Nicodemos. Havia também um outro jovem chamado João. Sobre uma padiola de couro, traziam o cadáver de um homem. 
Minhas pedras se comoveram quando o viram. Mal se podia reconhecer nele um homem, tão desfigurado estava. Parecia um verme. Estava coberto de terríveis chagas e os ossos deslocados das articulações. Sofrera, sem dúvida, torturas extremas. Senti como se todo o ódio do inferno o tivesse atingido. Tudo nele era indizivelmente majestoso. Seu nome: Jesus, o filho de Maria. Morreu crucificado, castigo ignominioso, reservado somente aos piores criminosos.
Quando acabaram de embalsamar o corpo de Jesus, o envolveram em faixas e o cobriram com um longo sudário. Além do perfume do bálsamo, um odor de santidade emanava daquele corpo. Senti como se todo o universo estivesse de luto. Terminado o sepultamento, cheios de tristeza, depois do último adeus, afastaram-se lentamente.
A senhora morte tinha feito mais uma presa. Por uns instantes fiquei a contemplar aquele corpo inerte. Definitivamente, concluí, a morte tem a última palavra sobre a vida humana. Pelo menos, de agora em diante não ficaria mais só. Além do corpo de Jesus, teria a companhia dos familiares e amigos que viriam visitá-lo ao longo dos anos. Um dia, passadas três ou quatro gerações, também dele esquecerão. O meu destino, devo reconhecer, está irremediavelmente selado: o completo esquecimento.
Fui construído dentro de uma gruta. Assim que o último raio de luz se extinguiu, bloqueado pela pedra que rolaram para fechá-la, o extraordinário aconteceu: uma luz brilhantíssima cercou o corpo de Jesus e dois anjos, de aparência sacerdotal, com os braços cruzados sobre o peito, se prostraram em silenciosa adoração. Um ao lado dos pés e o outro ao lado da cabeça. Lembravam vivamente os querubins que guardavam a Arca da Aliança. Afinal de contas, quem era este misterioso homem que jazia em meio leito supulcral?
No domingo de madrugada, atônito, vi a alma de Jesus descer sobre seu corpo. Subitamente suas pernas e braços começaram a se mover. Maravilhado, o vi sair das mortalhas envolto em luz e esplendor. Tinha na mão um bastão branco e sobre este uma bandeira desfraldada. Neste momento vi a aparição de uma forma monstruosa que do inferno subiu por baixo do túmulo. Levantou raivosamente a cauda de serpente e a cabeça de dragão contra Jesus. Com uma autoridade real, Jesus pisou a cabeça do dragão e bateu três vezes com o bastão na cauda da serpente; vi-a encolher-se cada vez mais até desaparecer.
Em seguida proclamou com uma voz tão cheia de poder que fez com que a toda a criação tremesse: “Eu sou o Primeiro e o Último, e o que vive. Pois estive morto, e eis-me de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1, 17-18). O universo inteiro, antes de luto, revelava-se inteiramente renovado. Em seguida, passou resplandecente através do rochedo. Um anjo em figura de guerreiro, como um relâmpago, desceu do céu, rolou a pedra para o lado direito e sentou-se sobre ela.
Por três dias, sem o suspeitar, eu servira de sacrário para o Salvador do Mundo, o Senhor do Céu e da terra, o Filho único do Deus vivo, o Cristo, o Messias esperado.

As pedras pregarão
Naquele domingo santo, o opróbrio que pesava sobre os filhos de Adão é removido; o rio de maldição que inundava toda a criação é estancado; o rio de Água Viva, jorrando do lado aberto de Jesus, tornava novas todas as coisas. Deste Sagrado Coração, nasce uma nova humanidade, liberta para sempre da escravidão do pecado. A morte deixa de ter a última palavra sobre o homem: “Cristo, tendo ressurgido dos mortos, já não morre, nem a morte terá mais domínio sobre ele” (Rm 6, 9). A última palavra sobre a história humana pertence a Jesus; o desfecho de todas as coisas a Ele pertence.
Satanás, espoliado e ridicularizado, vê seu império destruído; O documento cujas prescriçãos condenavam todos os homens é abolido; O abismo que os separava de Deus é transposto; As portas do Céu novamente se abrem; Obediente até a morte, e morte de cruz, Jesus é constituído Senhor de tudo e de todos. No Céu, na terra e nos infernos, todo joelho se dobrará ao terrível e santo nome de Jesus. Rei do universo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo torna-se o soberano Juiz dos vivos e dos mortos. A própria morta, antes cheia de orgulho, morrera com as últimas palavras de Jesus na Cruz: "Está consumado".
Hoje, não mais invejo as pedras do Templo. Elas guardaram a Arca da Aliança; eu abriguei a Arca da nova e eterna Aliança; Elas foram visitadas pelos sumos-sacerdotes; eu tive em meus braços corpo do sumo e eterno sacerdote. Elas contemplaram o sacrifício expiatório de bodes e carneiros; eu servi de altar para o Cordeiro de Deus, cujo sacrifício expiou o pecado de todos os homens; Elas ouviram as profecias a respeito do Messias; eu hospedei o próprio Messias. Elas agora derramam lágrimas de saudades, porque do templo de Jerusalém não restou pedra sobre pedra; eu sou regado por lágrimas de milhões de pecadores que, arrependidos, todos os dias abrem-se à Salvação que Jesus oferece àqueles que o obedecem.
Passados mais de dois mil anos eu continuo um túmulo vazio. Minha solidão e meu opróbrio, porém, acabaram. Todos os anos, milhões de peregrinos, não apenas de Jerusalém, mas de todo o mundo, vêm me visitar. Tornei-me testemunha ocular do acontecimento que mudou para sempre a história humana: a ressurreição de Jesus. Que fascínio um túmulo vazio como eu exerce sobre tanta gente? Creio que é uma frase escrita sobre a minha lápide: “Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo?” (Lc 24, 5).
Na verdade, não sou um túmulo vazio. A partir da ressurreição de Jesus tornei-me sepultura de milhões de homens e mulheres que, em obediência à fé, morreram para o pecado a fim de nascerem para Deus. “Ou ignorais que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova” (Rm 6, 3-4).
Mais do que um túmulo, sou um desafio à fé de cada pessoa que me visita: “Disse-lhes Jesus: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá’” (Jo 11, 25s). Quando um peregrino me beija, reconhece que aquele que "Deus tanto amou o mundo, que deu seu Filho único, para que todo aquele que crê não pereça, mas tenha a Vida Eterna" (Jo 3, 16).
Tenho um único sofrimento: saudades de Jesus. Sei que no dia da restauração universal, quando Jesus aparecer sobre as nuvens, haverá céus novos e terra nova. Neste universo novo, a Jerusalém celeste, Deus terá sua morada entre os homens. Chegará o dia em que deixarei de ser inundado pelas lágrimas dos peregrinos, porque Deus “Enxugará toda lágrima de seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!” (Ap 21, 4).
Neste dia os túmulos deixarão de existir. Também renovadas, minhas pedras serão usadas para construir a Jerusalém celeste. Ali, unidas a todos os que foram lavados com o Sangue do Cordeiro, poderão contemplar e adorar para sempre a face daquele que um dia, em meio seio, esteve morto, mas agora vive para sempre. Vem, Senhor Jesus!


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